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Monday, May 19, 2025

“Amália, Ditadura e Revolução: a história secreta” de Miguel Carvalho (Dom Quixote)

Porto, 2 de [M]arço de 2020

Tive a felicidade de receber um exemplar das mãos do autor, jornalista que vai assumindo cada vez mais a faceta de escritor de não-ficção, onde a investigação jornalística é desempenhada com zelo e paixão, tingida com as cores da componente historiográfica. Partindo deste ponto de vista, a escrita de Miguel Carvalho tem vindo, nas últimas décadas, a desempenhar um papel cada vez mais crucial na preservação da memória histórica de acontecimentos que culminaram em profundas alterações sociais ao longo do século XX e transbordaram para o nosso tempo presente. O título desta biografia chama logo a atenção não apenas pelo mediatismo da figura da eterna diva do fado em si mesma, mas pelo subtítulo ‘Ditadura e Revolução’ - ainda mais do que pelo apelo da ‘história secreta’ por incidir numa faceta menos conhecida da vedeta, o seu lado humano, solidário com as vítimas do regime e verdadeiro amor à poesia. No entanto, o que realmente espicaçou a minha curiosidade como leitora foi o facto de Amália ser uma figura que transitou de um regime político para outro, movendo-se como um cetáceo que cruzasse diferentes oceanos, iludindo fronteiras e acabando por ocupar, ela própria, um lugar de fronteira na música - antes e depois da revolução. Garantindo sempre a posição assegurada num nicho que se pode quase que classificar de ‘não lugar’. Amália foi, assim, a nómada de entre dois regimes, assim como a eterna viajante, em permanente transumância, vendo-se não raro mais apreciada fora do próprio país do que no lugar que a viu nascer como se vê logo no prefácio onde o autor traça um paralelo entre a vida da diva portuguesa e a homenagem a uma figura idêntica a surgir, aludida do princípio ao fim, num filme do realizador italiano Federico Fellini. Começarei então por apresentar o ponto de vista do Jornalista e Investigador Miguel Carvalho, citando na íntegra o texto introdutório [eu não escrevo segundo o AO90, como o autor, mas segundo o AO45, por isso poderão encontrar, aqui e ali, fonemas introduzidos entre parêntesis rectos]: «COMO AMÁLIA ME ACONTECEU E la nave va (1983), desconcertante filme de Fellini cuja a[c)ção decorre a bordo de um luxuoso navio, é o relato de uma viagem destinada a dispersar as cinzas da “maior cantora de todos os tempos” à volta da ilha onde nasceu. Durante a navegação, cada passageiro reclama a posse da “verdade definitiva” sobre a vida da extinta “voz dos deuses”. Juram conhecê-la melhor do que todos os outros, alardeiam intimidade, detalham e retalham-lhe a existência e a carreira. Uns desesperaram a tentar compreendê-la, outros presumiram tê-la desvendado. E, no entanto, “para além do mito da cantora”, havia nela, segundo uma personagem, uma menina muito sensível e sozinha: “Quantas definições, quantas palavras, quantas histórias escreveram sobre ti. Mas nunca disseram quem realmente eras.” Quem foi realmente Amália Rodrigues? A ideia de escrever sobre ela acompanhava-me desde a sua morte. Amadureceu nesses dias de elogios fúnebres e pelos anos fora, à boleia da polifonia de testemunhos e umas quantas recordações, a fazer lembrar o ambiente vivido no navio de Fellini. “Todos temos Amália na voz”, cantara António Variações, com propriedade. E todos pareciam reivindicá-la. Eu, que cheguei ao canto daquela mulher aí pelos meus 14 anos, através do saxofone do Rão Kyao (Fado Bailado), senti-me, com o tempo, fascinado pela “estranha forma de vida”, que se escondia atrás do palco, das luzes e dos holofotes, à margem dos enredos, do voyeurismo e dos sentimentos de posse em torno da figura pública. A Amália que me interessava era a da mulher e das circunstâncias políticas que viveu. A história de como atravessara dois regimes e preconceitos ideológicos até ao final e para lá do século que foi o seu. A ditadura namorou-a, exportou-a e Amália, verdade seja dita, não se fez rogada. Mas ela guardava também os segredos das existências incertas e vacilantes. Por isso, soube iludir vigilâncias e amarras, acudindo a opositores políticos e cantando versos de autores proibidos, resgatando-os do silêncio e da perseguição. A democracia, sobretudo após a Revolução do 25 de Abril de 1974, não lhe foi meiga. “Eu simbolizava a noite e o Zeca Afonso, o dia”, disse ela, amargurada, recordando esses tempos de libertação cole[c]tiva para um povo, mas de “martírio” para os seus dias, acusada de colaboração com a polícia política e vassalagens ao regime deposto. Amália Rodrigues sobreviveu a silenciamentos, calúnias e ataques e até mesmo à sua morte antecipada - e do próprio fado - tantas vezes proclamada. Embora pouco estudada pela academia, muito se escreveu sobre o percurso artístico da voz inalcansável de Portugal no mundo, elogiada por nomes tão diversos como Jorge Luís Borges, Gonzalo Torrente Ballester, Nélida Piñon, Leonard Cohen, Edith Piaf e Caetano Veloso. Sozinha, encarnava as vozes de todos os povos. Era, na visão profética de José Carlos de Vasconcelos, “uma fantástica criatura de música e de palavras, que voava amarrada ao nosso chão e ao nosso destino”. No meu caso, sempre me seduziu a figura de Amália Rodrigues para além da carreira artística e das molduras onde tantas vezes a encaixaram. Mesmo não tendo ela uma biografia política - era, no princípio e no fim, uma artista superlativa - creio que Amália reclamava há muito um olhar, neste caso jornalístico, sobre o seu percurso à luz do Estado Novo, da Revolução e da construção democrática, até por todas as clandestinidades e histórias marginais esquecidas e ignoradas em função da construção do mito. Amália Rodrigues transcende-nos. Consciente das qualidades e atavismos do seu povo, ao qual pertencia “sem orgulho nem pena”, cantou-o nas suas introspe[c]ções melancólicas e pessimismos. Nele, apreciava a lucidez, mais dramática do que trágica, “entre a dúvida constante e um certo tipo de inquietação”. Selvagem como um cardo, paradoxal, misteriosa e contraditória, seguiu a intuição, “mãe de todas as inteligências” , sem se considerar indispensável. “Posso não prestar para nada, mas sou verdadeira”, dizia, certa do esquecimento que, afinal, nunca viria. “Cada um de nós viu e amou nela, necessariamente, coisas diferentes e, confundindo a imagem com a realidade, discutimo-la muitas vezes com base nesses estereótipos redutores que continham, cada um deles, pedaços de verdade mas nunca ‘toda’ a verdade”, escreveu o musicólogo Ruy Vieira Nery. Para Joaquim Sarmento, membro do PCP na clandestinidade e antigo deputado do PS, Amália não era de direita nem de esquerda, mas “simultaneamente suserana e Povo”. Por isso, na sua voz se encerra “o paraíso dos justos e inocentes e o cadafalso dos condenados, mescla de aristocratas, de rufiões, de burgueses, de operários que saltam os andaimes da sorte, o luar de todas as prostitutas e de todos os marginais”, mas também “o Poder e a corte deste, o contrapoder e a sua ambição enrolada”. Mais do que atribuir-lhe uma moral her[ó]ica, ética universal ou pertença a qualquer entidade cole[c]tiva - o que seria ridículo, tendo em conta a sua personalidade -, esta investigação jornalística pretendeu, tanto quanto possível, iluminar as brumas do percurso sussurrado do “heterónimo feminino de Portugal”. A definição cunhada pelo poeta David Mourão-Ferreira, assenta no que nela existiu “de raça e de graça plebeias, definitivamente imunes a todos os vírus da vulgaridade” ou “de genuína cepa aristocrática”, mas tão livre e tão forte que nem cabe na moldura das árvores. Amália Rodrigues é, ainda hoje, uma obra aberta, onde cabemos todos, sem divinizações. “Como todas as figuras tornadas mitológicas em vida” a fadista era, no feliz retrato de Clara Ferreira Alves, “um ser imperfeito”, humano, “ao contrário dos que nos querem fazer acreditar as sucessivas canonizações”. E várias vezes se cai ainda na tentação de colocá-la um patamar acima da espécie humana, incensando-a ou tornando-a intocável. Luxo de uma ditadura, idolatrada por um povo tolhido nos seus sonhos, Amália foi, no pós-revolução, vítima de desinformação e de trincheiras assanhadas, típicas de tempos convulsos. Por preconceito, inveja e oportunismo tornou-se, durante os primeiros meses de liberdade, vítima de ataques, calúnias, mentiras e meias-verdades que hoje nos habituámos a ver defendidas em outras plataformas, de forma refinada. Ela poderia ter-se defendido com argumentos de peso. Podia ter trazido a terreiro diversos nomes, circunstâncias e episódios para escudar-se de monstruosidades. Mas a tudo resistiu, certa da sua arte, da sua condição e da passagem do tempo, que tudo repõe no seu lugar. Não o fez em silêncio, é certo, mas nele adormeceu e preservou verdades, figuras e ocorrências que só a dignificam e se tornam incómodas para outros. Amália foi acusada de ser “a Princesa da PIDE” e de se ajoelhar à ditadura como sabem aqueles que com ela lidaram de perto, nunca se libertou desse desgosto. O facto de, em 2019, ter sido vetada a atribuição do seu nome a uma rua no Luxemburgo, por causa das suas alegadas afinidades com a ditadura remete-nos para a importância de desvendar facetas segredadas, desconhecidas ou esquecidas sobre a cantora. O tema gerou controvérsia entre a comunidade portuguesa naquele país, e é revelador do muito que falta contrastar sobre a figura de Amália Rodrigues, para lá dos consensos sobre a sua dimensão artística. Humanizar Amália e dessacralizá-la usando as ferramentas do jornalismo, as únicas que conheço, é a minha forma de tentar trazê-la para um lugar onde todos possamos rever-nos nela. Santificada, mitificada ou execrada, a figura de Amália já foi adaptada a todas as narrativas e “religiões”, consoante os casos, os interesses e as épocas. Realidade, imagem e devoção confundem-se, mas Amália representa, acima de tudo, uma categoria e cultura à parte, não moldável. Um enorme caudal de entrevistas, fontes, documentos e geografias permitiu-me aproximar a lupa sobre esta mulher que foi “a voz do povo” e seguir o seu coração, independente e livre pensamento, sem receio de se negar ou contradizer. Em vez de a divinizarem as suas atitudes e gestos clandestinos talvez revelem, isso sim, as costuras e a profunda humanidade do seu ser. Muitos dos entrevistados e protagonistas deste livro nunca tinham falado sobre esta temática. A geração que, na sua maioria, não viu nem conheceu Amália Rodrigues para além da voz, merece que lhe seja contada, sem preconceitos nem liturgias, as histórias desta mulher transcendente, minada por controvérsias e estereótipos. “O canto de Amália”, lembrou-nos em tempos Caetano Veloso, “mantinha Portugal vivo e pairava acima de Salazar e da Revolução dos Cravos”. Recordemos, a propósito e de uma vez por todas, as palavras do poeta David Mourão-Ferreira: “Amália teria sido inevitavelmente quem é, fosse qual fosse a época em que vivesse, fosse qual fosse o regime ou a ideologia dominante, sob o qual tivesse nascido ou desabrochado”. Não teve bandeiras nem assumiu compromissos políticos e é completamente descabido atribuir-lhe afeição por uma ideologia. Não era esse o seu universo. Tal não significa, como se comprovará nestas páginas, que fosse indiferente à condição do seu semelhante, ou se distanciasse de certos e constantes apelos. Continuo a acreditar que o jornalismo pode e deve contribuir para uma aproximação à verdade. Uma verdade, ao mesmo tempo simples e complexa. E, se algo se pode concluir acerca de Amália Rodrigues, é que ela nunca correspondeu a outra entidade cole[c]tiva que não fosse o povo português. Não há uma Amália a preto e branco, uma Amália de trincheira. Amália não é pertença de nenhuma capelinha, de nenhum regime. Amália não obedece a qualquer moldura onde a queiram meter. Perceber isso, a sua relação íntima com o povo, é a maior homenagem que lhe podemos fazer. Amália, ser imperfeito e controverso como a vida, dispensa canonizações. Monumento artístico e humano, reivindicada contra ou à boleia da sua vontade, não é, ainda assim, intocável. Por isso, olhar Amália Rodrigues para além da carreira artística, da sua música, do “boneco” e dos caixilhos onde a quiseram meter foi um dos propósitos desta investigação. Tendo sempre presente o que ela disse de si própria numa entrevista de 1976 - “Sempre aguentei as consequências de ser livre!” - saibamos também assumir as consequências de ouvi-la, conhecê-la e revelá-la no que nos legou de talento, poesia, rasgo, humanidade e superação. Amália aconteceu-nos de forma diferenciada. Mas queiramos ou não, habitamos o seu coração indomável, aquele fado, aquele poema e aquele momento, entre a maldição, o desencanto, a ternura e a libertação. “Tenho qualquer coisa em mim de Portugal, que as pessoas sentem”, dizia. Nela estamos e estaremos todos. Mesmo aqueles que ainda não a descobriram, por infelicidade, distra[c]ção ou preconceito. Devemo-nos e ao futuro, uma Amália Rodrigues plural, onde todos possamos rever-nos, sem fanatismos, habitando o seu canto, versos e humanidade, do Abandono à Primavera, da Fria Claridade à Gaivota, com novas e velhas roupagens. Sem rasuras nem evangelizações, mas conscientes ainda e sempre do privilégio que foi tê-la e que é ouvi-la, ainda hoje, por dentro de nós.» Trata-se na verdade, de uma biografia muito completa - já não na primeira pessoa nem com a componente confessional e diarística presente na biografia elaborada por Vítor Pavão dos Santos, de que falaremos brevemente, aqui, neste blogue - que percorre toda a vida da autora com uma narrativa que vai correndo, fluida, em estilo documental. É assim que a Amália, ‘pintada’ por Miguel Carvalho nos surge no seu contexto social: origem humilde, de uma família beirã, deslocalizada para Lisboa, onde a sua voz se vai fazendo notar, a partir de Alcântara e crescendo pelas ruas adjacentes até chegar a Alfama, ser descoberta por um Pigmalião que se deslumbra com a sua beleza e voz [não vou dizer que foi, para tal terão de ler o livro], que lhe abre as portas para um meios social de elite - aristocracia e alta burguesia - que a ouvem fascinados. Mas não só. Amália trava também amizade com poetas, músicos e várias personagens do mundo das artes performativas destacando-se pela sua extraordinária sensibilidade artística. Olhada com desconfiança pelos diferentes regimes, consegue passar incólume, sobrevivendo às maiores convulsões políticas que sacudiram o País ao longo do século passado. Ao lermos este livro de Miguel Carvalho ficamos a perceber que, mais do que fiel a uma ideologia, Amália Rodrigues foi sobretudo fiel a si mesma: isto é, à arte, à beleza do canto, da música e da poesia, passando por entre as malhas da censura, sempre que necessário (o caso do fado de Peniche). Ou, noutras ocasiões, resistindo a invejas mesquinhas e difamações. Num e noutro caso, sempre vertical, sem jamais ceder a um princípio que sempre foi, para si, fundamental: o da solidariedade. Mesmo com os mal-amados (e até odiados) pelo Poder. Haverá ainda ‘Amálias’ hoje em dia...por esse mundo fora? Vila Nova de Famalicão 18 de Maio de 2025 Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 12, 2025

Manual para Amantes Desesperados de [Ana] Paula Tavares (Caminho)

Este não é de todo um exercício académico, com procura de intertextualidades e influências literárias na escrita da autora. Aliás, este foi o meu primeiro contacto com a escrita de Ana Paula Tavares. Uma escrita que considero ir ao âmago do que é a condição humana universal, daquilo que é ser mulher - seja em África, na América, na Oceânia, Ásia ou na Europa profunda, na qual, se recuarmos ao tempo das nossas avós, encontraremos muitos pontos de contacto com as mulheres que se movem no contexto comunitário e familiar africano que nos descreve Ana Paula Tavares. O livro de poesia desta magnífica escritora, natural de Angola, estava na minha estante há já muito tempo. Havia-o adquirido em 2012, nas Correntes d’Escritas, um ano antes de emigrar. Nessa altura, trabalhava ainda, a recibo verde, mas já não tinha o projecto de literatura e cinema que desenvolvia na Biblioteca - e com cuja avença pagava a segurança social -, consumido na fogueira da Troika. Eram tempos de austeridade e a cultura passou, então, a ser vista como um luxo supérfluo, um despesismo inútil, sobretudo na cidade onde eu vivia. Houve um festival de cinema que deixou de se fazer. Sessões de poesia com poetas vindos de vários municípios vizinhos - que levavam vozes subversivas de poetas vivos e mortos a vários locais públicos - foram simplesmente suprimidas. No meio de tudo isto, a Póvoa de Varzim continuava a fazer a diferença, mesmo com cortes nas verbas. E ainda bem, porque foi lá que conheci Ana Paula Tavares e a sua poesia. Uma voz doce, vinda de África, com uma poesia telúrica, a falar da condição feminina no sul de Angola, entre o mar e o deserto, que emerge da paisagem e se funde com ela. Uma poesia que fala de memória, da voragem do desejo, da fome de amor, da sede de criação e liberdade a partir do barro humano, cozido no fogo do gineceu, à volta do amor e cuidado da família e do cuidado com os mais frágeis. Neste gineceu, as mulheres unem-se como as leoas, para fazer crescer a comunidade, cuidando das novas - e não tão novas - gerações, mantendo aceso o fogo de Vesta (se quisermos fazer uma analogia com os deuses do panteão romano), religando-se através do fogo, para produzir a comida e afastar possíveis ameaças - simbolizadas, a dada altura, pela hiena. Paralelamente, as relações entre as mulheres e os homens cozinham-se também no fogo do desejo, temática que atravessa toda a escrita de Paula Tavares, neste livro em particular. Este volume tem apenas 37 páginas, mas confirma o adágio de que ‘é nos frascos mais pequeninos que se encontram os perfumes mais intensos’. Os poemas são pequenos riachos que formam o caudal do rio que é a própria vida. Caudal esse que se projecta no quotidiano dessas mulheres ligadas à terra mas que vão tecendo, dia após dia, o fio da vida ligando a mesma terra aos outros elementos - como o vento que transporta as chuvas e as areias do deserto com as sementes das plantas e os insectos que alimentam os solos e aqueles que lá habitam. E enquanto elas tecem, dia a dia, o fio da vida, confirmam a epígrafe do dito umbundu, logo no início do livro, “Um cesto faz-se de muitos fios” . Na análise propriamente dita dos poemas de Ana Paula Tavares,verificámos que a sua poesia se plasma no quotidiano instável, de um sujeito poético em trânsito, física e psicologicamente nómada, em fuga. E, contudo, resiliente, movendo-se numa realidade em constante mudança, num cenário de impermanência, como sugere a imagem das dunas. Os amores são líquidos como a areia do deserto que escorre por entre os dedos. E queimam, como se vê no poema logo na página 9: «Mantém a tua mão No rigor das dunas Andar no arame Não é próprio de desertos (...) Mantém a tua mão Perpendicular às dunas E encontra o equilíbrio No corredor do vento A nossa conversa percorrerá oásis Os lábios a sede Quando saíres Deixa encostadas As portas do Kalahari» Depois, no poema seguinte (pp. 10-11), dá-se a continuidade ao raciocínio: «Pode ser que me encontres Se caminhares pelas dunas Sobre a ardência da areia Por entre as plantas rasteiras (...)» No livro, estão ainda presentes múltiplas vozes, embutidas no discurso do sujeito poético, vozes femininas, que o mesmo vai fazendo desfilar à medida que as convoca, para a apresentação deste carnaval polifónico de vozes do deserto a surgir em simultâneo (pg.13): a rola, o cuco, o bem-te-vi. E não é por acaso que estas são vozes com asas, vozes de liberdade, que se contrapõem às do animal doméstico, a parir no curral - que tanto podem ser as vacas como as mulheres que nunca saem do curro do patriarcado (de lembrar que Maria deu à luz Jesus numa mangedoura), diferentemente da voz narrativa, da amante, que vagueia, livre e sem amarras e cuja vista se perde no horizonte, como o vento no deserto. Depois, há também a presença do invasor, o antagonista, o destruidor da harmonia - representado pela hiena - que pode ser a metáfora do soldado, do mercenário, da guerra propriamente dita ou, simplesmente, algo que desrespeita, que entra de forma violenta e desautorizada no espaço privado feminino, semeando o caos e a dor. Num poema, a hiena leva o cabrito pequeno e parte a cabaça dos sacrifícios (pg.13), ou seja, dá-se uma ruptura com o sagrado, o objecto que preserva a ligação entre os humanos e os deuses e mantém acesa a fogueira que garante a sobrevivência da humanidade, pois esta precisa do fogo, como já foi dito, também para cozinhar: «Dormias Enquanto cantava a rola O cuco e o bem-te-vi Dormias Enquanto duas vacas Pariam no curral Dormias Quando a hiena entrou no cercado Levou o cabrito pequeno E partiu a cabaça dos sacrifícios (...)» Nestes poemas fala-se, também, de insubmissão de amores contrários à lógica e ao interesse, à ordem social e às hierarquias, obedecendo apenas aos corpos (pp.14-15): «Devia olhar o rei Mas foi o escravo que chegou Para me semear o corpo de erva rasteira (...) Devia olhar o rei Mas baixei a cabeça Doce terna Diante do escravo.». O sujeito poético curva-se assim, acima de tudo, ao desejo, ao seu tempo e ritmo próprios (pg. 16) «Nas tuas mãos Ardia barco de espuma rede das tuas mãos escorria língua de fogo sede nas tuas mãos sentia dobra do vento febre nas tuas mãos tremia nome de vida tempo.» Todavia, o tempo do amor e da guerra coexistem, por vezes, em simultâneo, em locais diferentes. A ocorrência desta simultaneidade é perceptível na sucessão sequencial dos poemas da Autora, que nos faz notar que a tranquilidade e o tumulto podem ocorrer no mesmo instante em loci diversos, dada a imensidão geográfica de uma região como a do deserto do Kalahari: o amor livre , ao som do canto das aves, a dor das vacas no curral, a dar à luz os seus bezerros, o fim de uma vida que praticamente não viveu como a do jovem cabrito, levado e, provavelmente, morto pela hiena. Na floresta, no deserto, fora dos grandes aglomerados humanos, dos currais, ou seja no mundo livre, os poemas tingem-se das cores da rebelião subversiva (pg. 17): «Reconheço a tua voz no lume das dunas clara grave com um leve travo amargo entre as vogais reconheço a tua voz no tronco retorcido das árvores simples palavra a palavra dita a tua voz é a floresta galeria na terra vermelha do corpo.». Mas quando a morte intervém - como mostram as formas verbais no passado, pretérito imperfeito -, o amor transforma-se e passa a ser memória em vez de corpo. A presença terrena passa encontrar lugar no coração da amante, através da memória e evocação da presença do amado, re-cor-dando ou tranformando o amor sublimado em compaixão por um ‘anjo caído’ (pg.18), rematerializado na presença de um amor outro, este como lenitivo, caído num colo em sangue (idem) de um coração em ferida: «(...) Tu eras o bicho cinzento Do entrelaçado dos limos O da multidão O que deslizava na água Como a sombra. Agora, alguns anos depois Um anjo caído Encontra ninho No colo em sangue do meu peito.». A vida prossegue, contudo, no lento desenrolar dos dias e atravessa, tal como a luz, as frestas dos muros que se vão erguendo nas divisões de fronteiras e decorrentes das guerras. Todavia, a vida e o amor, através do verbo, perseveram, insubmissos, o seu curso como os rios que vão erodindo a pedra (pg 19): « (...) há velhas mulheres pousadas sobre a tarde enquanto a palavra salta o muro e volta com um sorriso tímido de dentes e sol.». No poema “De onde eu venho” (pp. 20-22), fala-se da paixão que leveda com o tempo, tal como o pão, que depois se transforma na fogueira que é o coração da casa. E, aqui, vem-me à ideia o mesmo paralelismo, do fogo de Vesta, a deusa dos Romanos que velava pelo lar e pelos antepassados. O fogo, o forno do pão, a fogueira e o fogo do útero são o mesmo lugar onde fermenta o pão que alimenta a humanidade e os novos seres que perpetuam a espécie que assim leveda e se expande também. Este lugar pode não ser necessariamente uma casa; pode ser uma árvore na floresta, um oásis no deserto, uma ínsula no meio de um rio, ou uma duna que esvai de um dia para o outro com o vento. É todo o lugar onde a humanidade fermenta, leveda e se expande. Um lugar, físico ou imaginário, sedentário ou nómada, para onde confluem todos os elementos. Ali à fogueira, junta-se o vento e a chuva a agir sobre os solos para que a vida se renove. Também a água, que vai pingando como os dias, dos tectos, das folhas das árvores e, de mão dada com o tempo, vai erodindo as pedras das casas, assoreando terrenos, desgastando corpos, fazendo as vidas, continuamente seguir o seu curso. Vidas que após o seu término permanecem na memória colectiva, como os rios que correm para oseu destino final: o Atlântico (pp. 21-22). « (...) De onde eu venho empresta-se o corpo à casa a memória ao tecto onde pinga a chuva como se fosse agora como se fosse sempre depois estendem-se os cogumelos e olham-se as flores onde o desejo passeia devagar. São bem-vindas as chegadas há portos e cais por todo o lado e, na falta, braços fortes que nos carregam ao vento pode-se ficar lento como redes nas dunas. (...) De onde eu venho podemos esquecer os dias e andar pela relva a beber as vozes. Uma mulher partiu de nós e deixou o canto para nos adormecer a alma. Seu nome era Nina e a sua vida terminou a sopro hoje de manhã conheço as suas crianças e sei de que se alimentam. De onde eu venho nascem os rios nos nervos da terra correm certos para o mar ou perdem-se nos lugares do tempo sem que ninguém os detenha aí lavam as raparigas os seus primeiros sangues constrói-se um sol de mentira para pendurar de noite na porta da vida. Venho de muitos rios e um só mar o Atlântico suas cores secretas a música erudita da praia a espuma lenta das redes de onde eu venho há lá e cá luz, risos de gargantas feridas almas abertas uma ciência antiga de treinar os olhos para as fibras depois as águas logo a seguir as tintas e nadar sobre a terra com passos de silêncio para que nada perturbe aos olhos a luz.». No entanto, não existe, na poética de Ana Paula Tavares apenas mulheres guardiãs do fogo do lar, como a romana deusa Vesta. Há mulheres cuja chama se apaga rapidamente, como Nina, no poema acabado de citar. E há, também as sacerdotisas e pitonisas como Adélia (pg. 23) que lêem os destinos aos humanos e os presságios nas forças da natureza: «Adélia segura a minha mão Dentro do templo Move com força os lábios Diz: Nós, as concebidas no pecado Fechadas de vidros No altar do mundo Adélia lê as estelas As escritas da areia Lava com cuidado As feridas Diz: Os sonhos são desertos Com navios encalhados.». E, claro, há as ‘outras’. Aas vagueantes do amor nómada (pp. 24-25), como a voz narrativa/sujeito poético, que se desdobra no seu duplo - o Eu e a Outra, a ‘louca’, ‘o demónio’, por oposição à ‘santa’ de cujo fogo, hoje extinto, só restam as cinzas. Há “coisas que só se confessam diante de um pau e nunca diante de gente”, como o adágio nyaneka que serve de epígrafe a este poema em particular: «Das duas de mim só percebeste A louca A voz de íntima nudez O grito surdo da fêmea. Das duas de mim Só percebeste a outra A dos cabelos soltos Cabaças no ventre E um demónio Nos cabelos Das duas de mim só percebeste a sombra A embriaguez do vinho O brilho da palavra O sonho Agora que um mapa estranho Traçou na face os caminhos da santa O sonho apareceu despido Ainda voltas De vez em quando Com as palavras da louca.». Se, no poema anterior, o fogo religava o acto de alimentar e cuidar da família, integrando simultaneamenta o fogo do desejo físico - sublimando também o sexo como essencial para a união dos seres consagração do renovar das gerações bem como da manutenção e expansão dos povos -, neste poema está também presente fogo como símbolo da actividade do espírito. O fogo do verbo assegura a coesão das almas, mesmo quando ameaçadas pela morte - metaforizada na presença dos cogumelos, agentes decompositores. O contraste surge com a vitalidade do desejo, transmutada nas flores, órgãos reprodutivos do mundo vegetal. Vida e morte a digladiam-se no poema, um dos mais belos deste livro onde, da mesma forma, se defrontam os dois arquétipos de mulher que é simultaneamente una e dupla: ‘a louca’, devotada ao prazer, e a santa, devotada aos outros, à família e à comunidade. A serenidade inscrita na voz poética, integra ambas as imagens do Eu feminino, fundindo-as numa só persona. O desamor, ou talvez a morte está, por sua vez, inscrita em todo o poema que se segue (pg, 26), na voz que sucumbe, assinalada pelo declinar do volume no último verso que, em contraste com os anteriores, inicia com letra minúscula: «Esta manhã dói-me mais do que é costume A pele As escarificações As cicatrizes Doeu-me a noite de laços e espuma Dói-me agora a pele As escarificações as cicatrizes Dói-me o teu corpo deitado O silêncio Os gritos em feixe dentro de mim.» No poema que se segue “Otyoto” a mulher-mãe que surge como alimento e esquecimento de si patente na supressão do desejo, como se vê nos versos que se seguem (pg. 27) «Todas as mães da casa redonda disseram (...) Cuida do corpo da casa e das tranças Desfaz-te em leite Para a fome das crianças Ninguém falou de dor Abandono solidão A loucura é palavra interdita Ficam os sonhos a voar Pássaros na boca do vento.». O poema seguinte, dedicado a alguém chamado de ‘Ivone’ (pg.28) sugere uma violação, ou um qualquer outro acto de violência, onde o homem é metaforizado na figura do escorpião azul - e o azul assume aqui a significação da morte, do veneno, cyanido, que deixa o coração gelado. «Frio frio frio Frio como a água do rio Procuro O escorpião azul Que me comeu as entranhas. O homem que saltou da janela Deixou sementes no choco E o coração frio frio frio Frio como a pedra No rio.». O poema seguinte completa a sequência narrativa (pg. 29-32) trazendo a cura personificada num conjunto de rituais, sortilégios e encantamentos com a finalidade de afastar a “febre” que corrói o corpo e a alma: «Debaixo da árvore da febre (...) Preparada para o tempo caminhei sobre as marcas de sangue deitei-me debaixo da árvore da febre Perdi a máscara Pwo as pulseiras de protecção os óleos do início os frascos dos remédios Perdi as palavras as dos poemas e do silêncio (...) vi a minha pele velha rasgar-se ao sol debaixo da árvore da febre Vi o meu pano de nascimento desfazer-se debaixo da árvore da febre Como uma velha leoa fiquei só debaixo da árvore da febre sem os óleos de protecção as palavras o silêncio os cantos a atravessar desertos e medos Fiquei só debaixo da árvore da febre (...) Debaixo da árvore da febre eu não disse nada Debaixo da árvore da febre ardo devagarinho sem as palavras o silêncio os óleos de protecção os cantos de atravessar desertos o fogo sagrado dos antepassados. Viram a minha máscara Pwo?». Novamente é retomada a fala do sujeito poético, que incorpora a da jovem violada. E é pelo olhar desta que entra a personagem da sacerdotisa, agente de cura da mulher de alma destruída. Que perdeu as ferramentas e utensílios que lhe serviam de defesa espiritual contra o Mal. Logo depois, no poema seguinte, entra a fala do velho ancião, à laia de epílogo de uma história triste, um incêndio maléfico de cuja passagem só restam cinzas calcinadas. De onde a harmonia possível renasce lentamente após o afastamento da ameaça. A presença da ‘hiena’ remete para a ideia do saque aos sonhos e à esperança, mesmo após o seu afastamento “enchendo o deserto de gritos” (pg.33). A morte, simbolizada pelo pássaro (abutre?) que que sobrevoa três vezes, em círculos o corpo feminino destroçado, segue o seu caminho e afasta-se, tal como a hiena (pp. 33-34): «A hiena seguiu o seu caminho Enchendo o deserto de gritos Do meu corpo saía o sangue dos princípios Noites de efiko ritual de iniciação A hiena seguiu o seu caminho Enchendo o deserto de gritos O pássaro grande voou três vezes Sobre mim Três vezes voou e seguiu o seu caminho A minha morte pequena ficou ali feita deserto Enquanto a hiena Seguia o seu caminho Enchendo o deserto de gritos.». A fala do ancião deixado moribundo pela “hiena” depois de ter feito mais estragos na aldeia (o cabrito, a jovem...) coexiste em simultâneo com a da ‘velha’ no último poema em que esta fala da perda irrevogável da inocência. É uma voz despojada de tudo, excepto da memória, onde se perdeu a felicidade dos dias tranquilos onde reinava a alegria e a pureza do coração, a inocência, simbolizada pelo nenúfar (pg. 35): «Navego uma solidão de búzios No mar verde de canela e açafrão A noite é mais fechada No ar de prata e pólen Que respiro Meu coração é um lago Por onde deslizou a vida Sem flores Sem nenúfares.». Há depois todo um trabalho de reconstituição e reconstrução da alma que nunca conseguirá fazer sozinha. Terá de ser um trabalho a quatro mãos para reunir os “ossos do tempo” (pg. 36) «Então perto do limite, ele cumpriu a promessa (...) Ali debaixo da terra quente e negra». No último poema (pg. 37), é atingido finalmente o bem supremo, o conhecimento de si e do mundo: «No deserto vi as estrelas Do caminho do meio (...) Com os poemas inscritos (...) No deserto vi as estrelas A tempestade A solidão por dentro Olhei de novo o escravo Sentei-me a olhar o fim Encontrei o segredo fechei devagarinho as portas». O ‘segredo’ do fluir da vida no espaço e no tempo é a principal riqueza a transmitir, pela voz do sujeito poético às gerações vindouras. Ana Paula Tavares conquistou, com este livro, o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, em 2007. Absolutamente merecido. VNF, 07.03.2025 Cláudia de Sousa Dias PS: Outra excelente análise sobre este texto é a de Teresa Sá-Couto, neste blogue: https://orgialiteraria.wordpress.com/2009/01/30/a-poesia-de-paula-tavares/

Monday, April 29, 2024

"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)

Já li e comentei vários livros do Miguel Carvalho neste blogue - Dentada em Orelha de Cão (Campo das Letras), Aqui na Terra (Deriva), Lúcio Feteira: A História Desconhecida (Quidnovi) e A última Criada de Salazar (Oficina do Livro) -, todos eles empolgantes trabalhos de jornalismo narrativo. Mas nada como o livro de que hoje falo. Este foi o primeiro dele que li a causar-me um impacto tal que me obrigou a olhar o país e o meu passado de forma completamente diferente, sobretudo os primeiros doze anos da minha vida, antes de Portugal fazer parte da chamada CE (Comunidade Europeia, como então se chamava). O livro surgiu em 2017, um ano de incêndios florestais e da tragédia de Pedrógão Grande e, por isso, na altura do lançamento e, principalmente da sua comercialização pouco meses depois, muitos leitores confundiram a temática tratada, julgando tratar-se a obra de fogos florestais, que foram pródigos naquela ano. Mas não era o o caso. Uma grande amiga, já falecida, até aventou a hipótese de os fogos do início do Verão escaldante daquele ano de 2017 terem sido criados para desviar a atenção do próprio livro e do que ele vinha recordar! Mas a verdade é que passei a olhar por um prisma completamente diferente o 25 de Abril de 1974 e os anos que se seguiram, num Portugal que não era nem estava tão pacífico como se pensava, após um revolução onde nem tudo foram cravos. Tinha ouvido falar, é claro, nas FUP-FP 25, mas nunca como uma ameaça de longa duração (para alguns), apenas como fenómeno pontual (para muitos, sobretudo as gerações mais jovens que não têm a memória dos acontecimentos) e, sobretudo nunca tinha ouvido mencionar sequer os grupos e facções que faziam parte de uma rede bombista de extrema-direita (espalhada por todo o país, mas com maior incidência a norte do Douro), arquipélagos incluídos. Não conhecia de todo a sigla MDLP, em casa “não se falava de política”, as pessoas calavam-se e calavam os outros, impondo uma constante omertà. O regime havia mudado, mas o medo persistia. E os ‘Corrécios’ eram um grupúsculo cujo líder ninguém queria ofender ligados ao crime organizado e cujo nome ninguém, no seu juízo perfeito, queria sequer pronunciar em público. Portugal, nessa altura, era tão seguro quanto a Venezuela, o Brasil ou o México, mas faziam-nos pensar que o país era tão tranquilo quanto a Suécia, a Noruega ou a Finlândia. Para ficarmos com uma ideia mais exacta daquilo que trata o livro, passo a citar a introdução feita por Miguel Carvalho que ele intitula de “Contra o Esquecimento”: «Este livro é jornalismo, não é História. Fala do “lado B” da revolução. Retrata personagens, recupera relatos, e desvenda segredos de uma época de inusitada violência política, entretanto apagada da memória histórica ou das “memórias consensuais” do regime saído da Revolução de Abril de 1974. Este apagão não é inocente. A versão dos vencedores de um determinado período histórico guarda sempre esqueletos nos armários, com receio de que possam deslustrar o retrato público, os consensos políticos e sociais e o unanimismo sobre os factos, trabalhado ao longo de décadas. A imposição dessa memória concordante, sem grandes fissuras, sobre a época de grande confronto ideológico, político e social de democracia insere-se, pois, numa estratégia de domínio. “O controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia de poder”, escreveu o antropólogo social Paul Connerton, no famoso ensaio Como as sociedades recordam. Ora, se a utilização sistemática do aparelho de Estado para despojar os cidadãos da sua memória é típica dos totalitarismos, como devemos ba[p]tizar em democracia o discurso simplificado e a doutrina do esquecimento organizado para suprimir parte da História à memória dos povos? Falar desse período histórico português, escrever sobre ele, subverte, pois, a narrativa oficial sobre os acontecimentos, protagonistas e episódios dos primeiros anos da democracia. Os episódios, personagens, testemunhos e documentos que desfilam ao longo destas páginas, em boa parte inéditos ou resgatados a décadas de silêncios, nascem da obrigação jornalística de interrogar o passado e dar aos esquecidos da História o seu próprio direito ao passado, por muito que alguns deles só queiram ser lembrados pelo presente. São conhecidas as diversas narrativas sobre o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, os casos República e Rádio Renascença, o cerco à Assembleia Constituinte, entre outros. Aqui, o obje[c]tivo jornalístico é esgaravatar o que terá ficado ofuscado. Nestas páginas moram memórias clandestinas, subterrânea, mutiladas, marginais. Nelas cabem acontecimentos desconhecidos, ou relegados para segundo plano, subje[c]tividades e sombras que, uma vez iluminadas, ligadas e coligidas, talvez possam ampliar o olhar e o conhecimento sobre os extremos e as controvérsias de um tempo. Subvertendo versões instituídas, sem maniqueísmos, nem ajustes de contas retroa[c]tivos, o jornalista pode e deve dessacralizar a memória cole[c]tiva, combater visões homogéneas e simplistas da História, estereótipos sobre o passado e desassossegar os mitos. Quanto mais o presente instrumentalizar o passado unificando-o e manipulando-o, mais deve o jornalismo combater o esquecimento, a amnésia e a mentira, sem que para tal tenha de impor uma Verdade. A memória é plural. Não há um passado, há passados. Recuperar e reabilitar testemunhos e documentos tidos por inconvenientes ou menores, trazendo-os da memória privada para o espaço público é, pois, uma obrigação. Diversos historiadores e outros estudiosos oriundos das ciências sociais insistem em contrariar o argumento da superação de traumas do passado como pretexto para impor políticas de esquecimento, revisionismos despudorados e memórias de reconciliação. Alguns consideram imperioso lembrar que a memória não é composta de factos, mas de interpretações. E essas não são inamovíveis. “Os historiadores não devem esquecer que são os cidadãos que fazem realmente a História, os historiadores apenas a dizem”, escreveu, a este propósito Paul Ricoeur. Consciente de que muitas democracias modernas fazem amplo uso do “esquecimento por imposição”, a pretexto da manutenção da “paz social”, o filósofo francês deixou-nos uma interrogação pertinente: “Não será a prática da amnistia prejudicial à verdade e à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a amnistia e a amnésia? As respostas a estas questões não se encontram a nível político, mas ao nível mais íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória completado pelo de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer, mas de dizer o passado, de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja”, afirmou. Quase 27 anos de jornalismo [33, agora] ensinaram-me que o passado nunca está esgotado e obriga a reinterpretar o que sabemos. O passado tem longa duração. Mexer nele é contrariar este eterno presente em que vivemos. Hobsbawn chamou-lhe o “presente contínuo”, François Hartog cunhou a expressão “presentismo”. Ambos constituem a maior ameaça à pluralidade da memória e corporizam, segundo Fernando Rosas, “um quotidiano sem qualquer relação orgânica com o passado público da época a[c]tual”. A desmemória é, pois, o resultado desse “apagão sele[c]tivo” onde o presente é apenas um lugar habitado pelo imediato, sem passado nem futuro. Parafraseando T.S. Elliott, o mundo torna-se então propriedade exclusiva dos vivos, sem lugar para os mortos. Mais de quatro décadas volvidas sobre a fundação do regime democrático [meio século agora] e das “amplas liberdades” o autor encontrou diversos obstáculos pela parte de zelosos guardiães de arquivos públicos. Obstáculos legais, claro, ou não fossem as leis e as normas jurídicas, por vezes, os maiores aliados do silêncio e do esquecimento. Escudados na interpretação rigorosa das leis, o Arquivo geral do Exército ou a Assembleia da República podem, ainda hoje, recusar o acesso a documentos essenciais, para compreender, em toda a sua dimensão, este período turbulento da nossa História. Mais: a lei dá aos protagonistas dessa história o direito de se tornarem donos desse mesmo silêncio e esquecimento, uma vez que “as respe[c]tivas autorizações para a libertação total de documentos só podem ser dadas pelos próprios ou pelos respe[c]tivos herdeiros”. Será, de todo, aceitável esta privatização da memória pública? A isto juntou-se outra dificuldade, a do homem e das suas circunstâncias. Diversos protagonistas do período aqui retratado recusaram testemunhar sobre o mesmo. Uns de forma diplomática. Outros ignorando olimpicamente sucessivas solicitações. Outros ainda tendo por certo de que não passaram anos suficientes para que possam relatar as suas vivências no conforto da democracia, sem correr o risco de convocar certos demónios de tempos idos. Estes últimos talvez tenham razão. Mas o caminho faz-se andando. Este livro deve, em primeiro lugar, a Josué da Silva (O Julgamento da Rede Bombista), João Paulo Guerra (Polícias e Ladrões) e Eduardo Dâmaso (A Invasão Spinolista) inspiração antiga para desbravar territórios novos de investigação jornalística sobre um período da História recente que permanece na penumbra e na obscuridade. Este livro é também o resultado de dezenas de corajosos e contrastados testemunhos. Trata-se de protagonistas que permitiram exclusivo acesso a preciosos arquivos pessoais e aceitaram falar pela primeira vez, ou quebrar silêncios de décadas, sobre episódios que viveram, moldaram as suas existências e o nosso percurso cole[c]tivo, para o bem e para o mal. Este livro resgata memórias de vítimas das primeiras horas, meses e anos da revolução, a maioria delas ignoradas ou reduzidas a uma nota fúnebre num pé de página da História. Vidas que nenhum Juízo Final, parafraseando Jorge de Sena, poderá devolver “aquele instante que não viveram, aquele obje[cto que não fruíram, aquele gesto de amor que fariam ‘amanhã’.”. Este livro mergulha nas origens, cumplicidades e desenlaces da rede bombista de extrema-direita, nas investigações e processos judiciais turvos sobre os quais ainda hoje se guardam judiciosos e prudentes silêncios, não vá estragar-se a moldura do regime. Este livro pretende, por fim, iluminar as trevas de uma época irrepetível [será?, esperemos que sim, que não volte a acontecer], obedecendo a um ponto de vista jornalístico e a um conceito moral de dever de memória que recusa as “estratégias de esquecimento” teorizadas por Paul Ricoeur. No conjunto dos 18 capítulos, este livro é, na esmagadora maioria, inédito e original, mas também recupera e a[c]tualiza relatos, memórias e episódios trazidos a público, em primeira instância, na revista Visão. O que vão ler é, pois, a outra história da Revolução. Uma narrativa que foi sendo obstruída, reciclada ou sujeita a demasiados esquecimentos, mas sobreviveu até aos nossos dias e se oferece agora enquanto escrutínio e contraste das versões canonizadas. A construção da democracia não foi apenas isto? É verdade. Mas foi também isto. A História, essa, será sempre o que fizermos dela.» Miguel Carvalho Porto, 11 de Dezembro de 2016 Lembro-me de ter ficado muito poucas vezes, ao longo de quase cinco décadas de vida, tão intrigada como fiquei naquela Primavera de 2017, aquando da apresentação deste livro em S. Pedro da Cova, antiga cidade mineira. Tinha saído a correr de um outro encontro de escritores em Famalicão, onde também estive pela última vez com uma querida amiga antes de ela falecer cerca de dois meses depois, para aterrar num vale, onde se narrava episódios absolutamente extraordinários acerca dos primeiros meses/ anos do PREC (que depois os meus queridos amigos, agora falecidos, Manuela Monteiro e Fausto Lima, me haviam confirmado também). Afinal, a Revolução não fora feita só de cravos e canções. Houve sangue, também. O livro dá a entender, logo no índice, de um conteúdo dramático a esconder-se por debaixo de um ambiente de festa e poesia, com títulos a remeter para poetas, músicos de intervenção, escritores e cineastas neo-realistas e ficção de espionagem sob a conjuntura histórica a envolver a Guerra Fria. Sim, esta última também mexe os cordelinhos com a História de Portugal. Não somos assim tão periféricos nem tão desinteressantes do jogo do xadrez geopolítico internacional, mas já lá vamos. Senão veja-se a epígrafe, retirada da opera magna de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está”. Uma frase que remete para a circulação das elites, a sua renovação, mas garantindo que o sistema não mude demasiado. É um facto que mudou muita coisa no estilo de vida das classes menos favorecidas e um crescimento exponencial de uma classe média nos últimos cinquenta anos, mas estruturalmente o país não mudou tanto como seria de esperar. Não quero entrar demasiado na explicação, capítulo a capítulo, para não roubar aos leitores o prazer de ler o livro, mas posso desde já dizer que os primeiros capítulos são dedicados àqueles que morreram no próprio dia da Revolução de quem quase nunca se fala, histórias que Miguel Carvalho vem contar aqui, sob o formato de reportagem, muito ao estilo de Antonio Tabucchi. Histórias de gente que não fazia mal a ninguém, como a cotovia de Harper Lee (e de José Afonso, também), mas que morreram por um capricho da fatalidade e por se encontrarem no lugar errado à hora errada. São histórias trágicas, de pessoas comuns, iguais a qualquer um de nós, que poderiam ter escolhido andar na multidão naquele dia para ver o que se passava e assistir a tudo na crista dos acontecimentos. Testemunhas de um momento chave na história recente e que tiveram o azar de levar com uma rajada de metralhadora vinda de uma das janelas do quartel general da PIDE na Rua António Maria Cardoso, hoje transformado num condomínio de luxo. E a seguir à revolução seguem-se os movimentos contra-revolucionários, com algumas facções de esquerda a lançar ainda mais confusão na luta pelo poder, sendo que a quase totalidade desses movimentos tinha intenções muito pouco democráticas. Convém esclarecer que esses movimentos contra-revolucionários eram facções extremistas de direita e pretendiam reinstaurar o regime anterior - uma ditadura, com base num império colonial - e anular qualquer tentativa de mudança na pirâmide social. Convém, também, não esquuecer que, em Espanha, Franco ainda estava no poder e no Chile Pinochet seguia atentamente os movimentos da evolução política em Portugal com amigos-satélite no país. E, para complicar ainda mais as coisas, parte da esquerda ‘mainstream’ e certas organizações embriagadas por um horizonte de ‘poder popular’, ajudavam, segundo Miguel Carvalho, a ‘incendiar’ ainda mais o clima. No Norte de Portugal, a ala da Igreja mais radical, com o Cónego Melo à cabeça [que hoje tem uma estátua no centro de Braga] juntava-se aos movimentos contra-revolucionários, participando em acções violentas, inclusive atentados bombistas. A CIA, na pessoa do embaixador Carlucci, estava preocupada com uma possível sovietização do país. E, sobretudo a região a norte do Douro, estava toda em polvorosa, a braços com as arbitrariedades de grupos de “jagunços”, ao serviço de velhas elites, que beneficiavam do regime anterior, gente contratada para assediar a população e, particularmente, consciências potencialmente revolucionárias. É nesta época que políticos de grande carisma televisivo, oriundos quer do centro-esquerda quer do centro-direita, a que vulgarmente se chama de ‘arco da governação’, tentam chegar a uma conciliação e serenar os ânimos mas não conseguem evitar ter de fazer concessões a grupos que tinham muito poucas intenções democráticas, sobretudo com a direita reaccionária não democrática, a qual ficou durante grande parte das décadas que se seguiram, a operar fora do radar. A cidade do Porto, sobretudo na figura do Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes foi fundamental na mediação e execução do processo de paz, ao persuadir, por exemplo, os sectores mais radicais da Igreja a não se envolver no conflito político e, principalmente, em movimentos bélicos ou atentados a alvos ditos ‘comunistas’. Durante mais de dois anos o país, ao contrário do que se apregoava, foi de facto muito pouco pacífico, com atentados terroristas à bomba e assassinatos cirúrgicos perpetrados por forças reaccionárias. Entretanto, partidos do centro, movem-se como já foi dito parar serenar os ânimos, mas há acordos que implicam uma paz ‘podre’, permitindo que crimes de sangue permaneçam até hoje impunes, “conseguindo-se a paz mas não a justiça”. Em suma, só para abrir o apetite, este é o retrato de uma época ‘quente’, de uma faceta do país que conhecemos ainda muito pouco e que alguns insistem em fazer de conta que não existiu, mas permitiu que muito “lixo” fosse varrido para debaixo do tapete. Esse lixo que entretanto foi apodrecendo e gerando novos fungos, bactérias e vírus, hoje recrudesce em extremismos de mentes ressabiadas e a contagiar descontentes como a ‘Peste’ de que falava Albert Camus. E fazendo correr o risco de implodir cinquenta anos de uma frágil democracia. O livro de Miguel Carvalho é produto de muitos anos de investigação bibliográfica (muito completa e variada), consulta de arquivos judiciais e inclui documentos que servem de testemunho e janela para um passado de grande turbulência e medo. Só para ficar um ‘cheirinho’ do conteúdo aqui vai o texto da contracapa: «Quem foram as primeiras vítimas mortais da democracia? Porque razão foram assassinados Padre Max, Rosinda Teixeira e Joaquim Ferreira Torres? Que “crime” cometeu o professor sequestrado na Madeira? Quem protegia e que segredos escondia a rede bombista de extrema-direita? Como enfrentou o cônsul dos EUA no Porto o PREC? O que relatam os diários do norueguês baleado no “Verão Quente” de 1975? Que organizações conspiraram contra a revolução? Como é que a Igreja mobilizou e abençoou a luta contra o “comunismo”? Como foram tratados todos os presos de direita em Caxias? O que sabia a PJ sobre o terrorismo político e tudo o que nunca chegou a julgamento? Com recurso a centenas de documentos [muitos deles aqui digitalizados], entrevistas e documentos inéditos, esta investigação jornalística traz à luz do dia histórias secretas ou esquecidas da contra[-]revolução. Quando Portugal ardeu e esteve à beira da guerra civil.» Este é um livro que me mostra que escrever é sobretudo um acto de extrema coragem e temeridade. Cláudia de Sousa Dias Londres, 27 de Abril de 2024

Friday, March 08, 2024

Portugal Amordaçado: depoimento sobre os anos do fascismo - Mário Soares (Arcádia)

Quando olhei pela primeira para este livro, o que me chamou a atenção, muito antes do título metaforicamente dramatizado, foi o subtítulo, por conter a palavra “depoimento”. Trata-se pois de um testemunho, de uma visão, de um olhar e um sentir do que foram os anos, metade de uma vida, quase, debaixo de um regime ditatorial. Mas antes de passar ao comentário do livro propriamente dito, penso que valerá a pena citar aqui, respectivamente, o prefácio, pelo punho do próprio Mário Soares, para esta primeira edição portuguesa de 10 de Junho de 1974 (a escolha da data também não foi por acaso) e, a seguir, o posfácio de Alfredo Barroso, na contracapa do livro: «O livro que agora se publica, pela primeira vez em edição integral Portuguesa, foi escrito durante o ano de 1971, quando me encontrava no exílio em Itália e em França, e editado em versão francesa encurtada pela Calmann-Levy, em Abril de 1972, sob o título de «Le Portugal Bailloné». Trata-se fundamentalmente de um depoimento despretensioso sobre os anos do fascismo e sobre a «luta indomada e indomável» dos democratas, tal como eu a senti e vivi a partir principalmente dos anos distantes de 1942 em que nela comecei a participar. Não se trata, pois, de um trabalho de história, nem de uma análise sociológica ou política aprofundada de uma situação que tão longamente persistiu em Portugal; trata-se antes, de um depoimento vivido, escrito a quente, no exílio, com a intenção de contribuir, embora modestamente, para a luta geral que então travavam contra a ditadura caetanista, todos os antifascistas anteriores ao 25 de Abril. O livro enferma assim de um certo condicionalismo temporal de que os eventuais leitores facilmente se darão conta. E, lido à luz da nossa visão de agora, poderá parecer, sob certos aspectos, insuficiente. Preferi, porém mantê-lo sem acrescentamentos nem actualizações, tal como o escrevi e vivi em 1971, quando a experiência do governo Caetano - recorde-se - ainda não era para alguns espíritos provadamente liberais uma experiência completamente falhada. Em certos pontos essenciais - como sobretudo nos capítulos «história de um crime» e «aventura colonial - surgiram, posteriormente, novos factos, importantes, que sem alterar a minha posição de base fundamental [,]a poderiam enriquecer e completar [,] se fossem desde já tomados em consideração. Trata-se, contudo, de um livro datado, que embora reduzido ao mais absoluto silêncio em Portugal teve aqui, como no estrangeiro, especialmente em França, uma relativa repercussão. Entendi, por isso, que o devia facultar ao conhecimento dos Portugueses - hoje que vivemos em liberdade - tal como o escrevi então e sem lhe introduzir correcções ou acrescentamento de última hora. O que se passou desde 1972 até à madrugada de Abril de 1974 em que as Forças Armadas restituíram Portugal aos portugueses - e que representa o lento apodrecimento de um regime condenado pela consciência nacional e internacional - a alvorada de esperança e de liberdade que estamos todos vivendo, desde então, constituem de certo novos e apaixonantes temas de reflexão política. Mas, por mais que pese ao meu editor, não representam novos capítulos possíveis do “Portugal Amordaçado”. Seriam antes objecto de um outro livro, bem diferente, que é cedo ainda para escrever, e a quem um dia (porque não?) meterei ombros, se as circunstâncias me proporcionarem o tempo para um tal trabalho. Mas não agora. Hoje, para todos nós, portugueses, o tempo não nos sobra para proceder a análises históricas, pois que todos temos que viver a história, alvoroçada e colectivamente. Lisboa, 10 de Junho de 1974» E, a seguir, o discurso apaixonado do posfácio de Alfredo Barroso a reforçar as palavras do autor: «Escrito durante a deportação a que o Governo de Salazar o condenara por tempo indeterminado, na Ilha de S. Tomé e durante os primeiros anos do exílio que lhe foi imposto pelo Governo de Marcello Caetano, este livro de Mário Soares, que só agora conhece a sua primeira edição em língua portuguesa, foi publicado pela primeira vez em França, em Abril de 1972. Testemunho lúcido e corajoso de uma experiência de luta constante e intransigente contra o regime fascista o livro de Mário Soares actuou como poderoso revelador junto de largos sectores da opinião pública estrangeira, profundamente alheada do drama português. Drama que bem pode consubstanciar-se nas admiráveis páginas do capítulo dedicado ao assassinato do General Humberto Delgado, cujas circunstâncias misteriosas Mário Soares conseguiu esclarecer quase por completo. Vigoroso libelo acusatório, antes do 25 de Abril, este livro de Mário Soares é agora, sobretudo, um documento histórico para compreender o passado e, por isso mesmo, um indispensável documento de reflexão contra os perigos que espreitam a liberdade e a democracia, que o mesmo é dizer contra todos aqueles que, encapotada ou abertamente, teimam ainda, desesperadamente, em impor o regresso a um passado que queremos definitivamente banido da terra portuguesa. Socialista de formação marxista, Mário Soares afirmou-se, ao longo de mais de trinta anos de luta anti-fascista, pela sua coragem e pela sua perseverança, como um dos principais porta-vozes das forças democráticas portuguesas. No Portugal livre em que vivemos desde o 25 de Abril, a sua biografia é já sobejamente conhecida, e nas páginas deste livro se traça, justamente, o itinerário político, do homem que, finalmente, pode hoje ser recebido, em manifestações de indescritível entusiasmo popular, pelas centenas de milhares de portugueses que acorrem aos comícios em que a palavra serena, rigorosa e lúcida do Secretário Geral do Partido-Socialista é o eco da liberdade e a esperança da democracia. Ministro dos Negócios Estrangeiros desde a constituição do Primeiro Governo Provisório da II República, Mário Soares tem sido também o melhor embaixador de Portugal no Mundo, outro hostil, que gora nos abriu as portas de par em par. Hoje, apenas cinco meses que são passados desde a libertação, o nome de Mário Soares está já, também - e para sempre o estará - indissoluvelmente ligado à história da descolonização portuguesa, que o mesmo é dizer à história da libertação de outros povos outrora oprimidos pelo mesmo regime que nos amordaçava.» Ao fazer esta recensão, não tenho em mente objectivos insanos como o de convencer quem tem convicções profundas de direita, mas sim de mostrar, a perspectiva do outro lado, para quem ainda estiver indeciso ou não souber o que é viver sob ditadura e sem possibilidade de exprimir um pensamento divergente, ou de fazer ouvir uma voz que não pertence ao poder ou, simplesmente, fazer passar livremente o pensamento crítico e até científico, apenas por discordar da voz dominante. Outra razão para o fazer é porque me parece que esta perspectiva não é tão massivamente difundida nas TV’s como é a oposta nos dias de hoje. A terceira razão é porque se trata de uma autobiografia que, não sendo história, como já foi dito, constitui fonte para fazer história, depois de confrontada com factos devidamente documentados por historiadores creditados. Além disso, o autor do livro é alguém que esteve na linha de frente, a combater na sombra, para a mudança do regime. Mário Soares não será o detentor da verdade, até porque nem ele próprio conseguiu iluminar todas os recantos obscuros das tiranias do regime anterior, como se viu no caso de Humberto Delgado, por exemplo, mas muito do que ele diz é corroborado por investigadores e historiadores creditados. Por isso acho relevante trazer hoje aqui, Mário Soares, à baila. Outros seguir-se-ão. No Domingo e nos dias que se seguem, se ainda me for permitido escrever. Assim, após a leitura das mais de 700 páginas do livro, acabado de escrever em Paris no mês de Fevereiro de 1972, mais do que um “depoimento inacabado”, como o classifica o autor (pg.728) é o dar conta da espuma dos dias o ‘zeitgeist’ da passagem de momentos-chave na história, começando há quase 140 anos atrás, desde 1891, altura do levantamento Republicano no Porto, a 31 de Janeiro, com a primeira tentativa de implantação da República em Portugal, ao mesmo tempo que estala uma grande crise financeira e colonial. Mário Soares, talvez pelo facto de o pai, João Soares, e vários membros da sua família terem estado na linha da frente dos acontecimentos do lado Republicano, movimentando-se no palco das acções políticas que estiveram na base da transição de um regime para o outro, dá-nos um retrato bastante detalhado e completo dos anos mais recuados da República e do declínio da Monarquia, nos primeiros capítulos do livro. De facto, até 1926, mesmo ainda dentro do período Republicano, houve períodos, ainda que breves, de ditadura (João Franco, Pimenta de Castro, Sidónio Pais) durante as quais se verificaram repressões violentas contra os Republicanos e Democratas, dos quais Mário Soares dá contas com especial acuidade. Percebe-se ainda que houve uma espécie de guerra civil, que prosseguiu, endémica, mesmo após a Implantação da República, e se desenvolvia até, de forma concomitante, com a Primeira Guerra Mundial, que gerou um clima de grande instabilidade económica e social no País. Uma guerra mundial (1914-1918) que foi sobretudo uma guerra de Impérios, ainda mais do que de ideologias e na qual Portugal não estava numa posição tão periférica quanto se possa pensar, já que os seus interesses coloniais em África interferiam tanto com os da Alemanha quanto com os da Inglaterra, aliando-se com esta mais por razões históricas e por tradição do que propriamente por motivos geopolíticos. Muitos destes episódios poderão ainda ser corroborados ou completados com a leitura de obras de historiadores como Rui Bebiano, Irene Pimentel, João Bernardo ou Fernando Rosas. Há depois o período passado na Faculdade de Letras (Filologia Românica) e a seguir a Faculdade de Direito onde se licenciou naquela que viria a ser a sua profissão nas décadas seguintes. Segue-se a história da formação das principais forças políticas, que constituem hoje os principais partidos políticos na AR, e que se começaram a consolidar a partir de meados do século XX (e algumas mesmo algumas décadas antes), sendo que destas houve também as que tiveram de optar por actuar na obscuridade, uma vez que toda e qualquer oposição política ao governo tinha limitações tão rígidas que toda e qualquer acção se revelava infrutífera e ineficaz, não havendo sequer forma de fazer chegar a mensagem à população, tão eficientes eram os mecanismos de censura. Isto é detalhadamente explicado já no capítulo IV, intitulado «Liberdade... “Suficiente”» (pp. 89-110). Depois, o posicionamento de Portugal relativo à segunda Guerra Mundial, que não foi tão neutro como se quer dar a entender, já que Salazar alinhou ideologicamente ao lado de Franco (apesar de algumas divergências e escaramuças que culminaram com a anexação do concelho de Olivença pelo Governo totalitário do Generalíssimo) Hitler e Mussollini, apesar da neutralidade aparente para evitar um eventual ataque Aliado. Os episódios que envolvem todos os acontecimentos protagonizados por Humberto Delgado são talvez aqueles que mais apaixonam Mário Soares enquanto narrador e autor do livro. Talvez pela proximidade temporal em relação ao tempo de escrita do depoimento, ou pela proximidade que o une à família de Delgado - Mário Soares foi advogado da família, levando a cabo as investigações das circunstâncias da morte do General, fazendo todos os esforços possíveis para recuperar o corpo (o que conseguiu) em Espanha e entregá-lo à família. O livro de Soares consegue ter o mérito de nos revelar (não tanto pela descrição directa e ‘contaminada’ pelas próprias preferências políticas e ideológicas e juízos de valor) características-chave destas duas personagens mutuamente antagónicas - Salazar e Delgado - mas, e aí reside o valor do livro, pela demonstração de atitudes indirectas, descrições de comportamentos e citações de discursos. Destes elementos que Soares deixa passar, quer no seu próprio discurso, quer nos discursos citados, ou mesmo atitudes demonstradas (externas ou observáveis) de Salazar e Delgado, percebemos ser este último um homem com muito boas intenções, mas impulsivo a ponto de, por vezes, as suas acções se tornarem imprevisíveis. Isto poderia causar desconforto, quer para o seu oponente no governo, Salazar, claro, quer para alguns dos seus aliados, ligados à URSS. Salazar aproveitou muito bem esta vulnerabilidade de Delgado, como Mário Soares demonstra, ao citar na íntegra a carta que o ditador fez difundir, tentando deitar as culpas para a morte do seu rival, nos próprios opositores. O Ditador é absolutamente convincente. A única coisa que o trai, ou melhor, que trai as suas palavras, são as suas acções, ao tentar bloquear, por todos os meios, toda e qualquer tentativa que leve ao prosseguimento de investigações que tornem possível a identificação, sem margem para dúvidas, do assassino ou dos assassinos de Delgados. Assim são as ditaduras. Neste tipo de regime, os opositores políticos não são descredibilizados. São mortos. De preferência, de forma a parecer um acidente, um suicídio, ou qualquer outra forma de desviar a culpa para a vítima ou os seus aliados. Os últimos capítulos são já o regime em acentuado declínio, após a morte de Salazar e a decepcionante transição para a democracia que, supostamente, seria operada pelo seu sucessor. O livro termina coma exortação à revolução e o apelo à mudança, à saída de um regime, ao qual muitos hoje, desejam que se reinstaure. O futuro ninguém sabe como será. O passado, fica registado em livros como este, que vale sempre a pena revisitar, como num filme. Ou num telescópio que nos mostra como eram as estrelas há biliões de anos atrás. Londres, 8 de Março de 2024 Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, September 13, 2023

OS ANJOS NÃO MORREM E TU MORRESTE DUAS VEZES de Marta Duque Vaz Kalandraka | Faktoria | Colecção Confluências

Em Os Anjos não Morrem e tu Morreste duas Vezes, de Marta Duque Vaz, encontramos em pleno o seu talento e mestria na escrita. Pode-se dizer, por isso, que este livro é um marco na carreira da escritora que vem das Ciências Sociais e que não se limita a falar de temas actuais, mas fá-lo com habilidade analítica, de sabor agustiniano, em algumas observações mordazes, e ironia quanto baste, além de o fazer com grande capacidade de expressão poética. Trata-se de um livro composto por doze histórias protagonizadas por mulheres de todas as idades que se deparam com situações-chave que afectam o seu mundo, marcando o seu percurso de vida e a sua forma de se relacionar com o Outro (“Laura e os Dias”, por exemplo), como se verá mais adiante. Este impacto dá-se em várias esferas - familiar, profissional, amorosa, intelectual, espiritual, artística - reflectindo-se em situações do quotidiano que servem de pano de fundo à criação literária e à arte de construir o conto como ficção curta, muito em paralelo com a forma de se construir a curta metragem cinematográfica. Numa estética que vai buscar inspiração ao Modernismo, Marta Duque Vaz recorre, para terminar quase todas as histórias, ao momento de suspensão da acção (como em “Sinfonia para um vestido verde” ou “A arte de ser a última”) deixando-nos no limiar dos acontecimentos, produzindo finais abertos de forma levar o leitor a conjecturar, ele próprio, o desenlace, tal como nas histórias de Katherine Mansfield ou mesmo de Clarice Lispector. Todas estas histórias de mulheres - que dizem respeito a todos os seres humanos - têm uma particularidade que causa sempre alguma perturbação. Perturbação que se antevê na escolha das epígrafes que antecedem o desfile carnavalesco das personae criadas pela autora, a incarnar os diversos papéis sociais e conflitos vividos pelas mulheres que fazem parte da sociedade hodierna. Passemos então às histórias, uma por uma, neste link: https://medium.com/@claudiadesousadias/marta-duque-vaz-a-confirma%C3%A7%C3%A3o-do-talento-na-arte-de-escrever-6cf54e552410.

Wednesday, December 14, 2022

O Lado Esquerdo (monólogo) de Marta Duque Vaz (Editora Assarapanto)


Fotografia de Carla Sousa para a capa de O Lado Esquerdo

Este livro foi lançado em Maio deste ano de 2022, já na cauda da pandemia do século XXI, aquando da estreia da peça de teatro no Coliseu do Porto com o mesmo título, em adaptação do texto de Marta Duque Vaz ao palco. A estreia nacional da peça tinha sido já no dia 19 de Novembro de 2021, no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, em Algés. O guião e encenação estiveram a cargo de Daniel de Freitas, e a interpretação - belíssima - da actriz Sonja Valentina que nos presenteia com uma ‘Isabel’ com algumas variações subtis face à personagem com o mesmo nome de Marta Duque Vaz. Mas isso acaba por não ter importância nenhuma, uma vez que esta Isabel é una e múltipla, desdobrando-se em muitas outras mulheres. Mas já lá vamos.

Para começar, tracemos o retrato da escritora, da qual já falámos por duas vezes, nos tempos remotos deste blogue (2005 e 2015). Marta Duque Vaz é jornalista de profissão desde os dezoito anos e escritora desde os seus verdíssimos anos de adolescente. Publicou, no final do liceu, um livro de poesia, lançado na fundação Cupertino de Miranda em Vila Nova de Famalicão e, em 2015, o livro infanto-juvenil A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos o qual foi também adaptado ao teatro no Brasil com o título O Tratado da Senhora Clap e trazida depois a peça a Portugal pela Companhia em tournée.

Pelo meio, Marta Duque Vaz foi escrevendo inúmeros contos, ainda inéditos, narrativas, ensaios e crónicas, dispersos quer pela imprensa escrita, incluindo revistas literárias (p.e. Revista Egoísta, coordenada por Patrícia Reis) quer pela blogosfera, entre outras produções narrativas, ficcionais e não só, em preparação.

A peça O Lado Esquerdo nasce do cruzamento de duas vozes monologantes, Isabel e António, que são colegas de trabalho. Na peça de teatro, temos uma voz em off a representar António, que se encontra a escrever um e-mail a Isabel. Um e-mail...que não é de trabalho. A voz de António ouvida em palco é, pois, a de um autor que se encontra a ler silenciosamente o texto que escreve.

Isabel, por seu turno, responde-lhe, em alta voz, num momento diferente, muito posterior à escrita da carta de amor/e-mail de António. Isabel, com o texto impresso, lê em voz alta e vai respondendo, comentando, ao texto de António. O efeito é como se fosse uma conversa entre os dois em que cada qual fala para um microfone que esteja a gravar o pseudo-diálogo. António escreve uma confissão, Isabel responde-lhe como se este a ouvisse.

A peça tinha sido estreada em Lisboa quase no final de 2021, onde teve três récitas, para depois ser novamente levada a cena com o lançamento do livro em 21 de Maio do ano seguinte no Coliseu do Porto, mas desta vez acompanhada pelo lançamento do livro. Ao sair da sala de espectáculos, dei por mim emocionada com a interpretação sensual de Sonja Valentina e o solilóquio de uma mulher madura a qual,  à medida que lê a declaração de amor-admiração que lhe é dirigida, vai reflectindo sobre as relações, os sonhos, a vida de uma mulher que já completou quatro décadas de vida e cujos sonhos e aspirações dariam para alimentar quarenta décadas - disse bem, décadas, não anos - mais.





Sónja Valentina, em palco

Não consigo deixar, porém de reparar em algumas diferenças de interpretação ou divergências em relação ao texto de Marta Duque Vaz. Sonja Valentina, dirigida por Daniel de  Freitas dotou a voz de Isabel, a protagonista, de uma tonalidade amarga, desiludida, que se exprime por vezes num riso levemente sarcástico, a denunciar uma certa desesperança, com o amor, com a vida e o seu percurso mais ou menos tortuoso.

Na verdade, ao assistir à peça, era frequente lembrar-me do contraste da expressão vocal da actriz e a da autora, a quem já ouvira ler o texto, em primeira mão, pelo menos em parte. A narradora de Marta Duque Vaz é uma mulher lúcida, de inteligência acutilante e humor desconcertante que, regra geral, desemboca em conclusões que deixam o leitor siderado de surpresa. Mas na Isabel de Sonja Valentina nota-se uma certa tonalidade mais escura, depressiva, nihilista que não faz parte do tom narrativo de Marta Duque Vaz. No entanto, a aparente distorção da personalidade na figura criada em palco em relação à do texto original, a personagem Isabel, acaba por não ser completamente descabida, uma vez que a Isabel de Marta Duque Vaz é alguém que se desdobra em múltiplas mulheres, podendo assumir facetas de humor que não estão contidas nos momentos descritos no texto. Isabel é pois uma mulher que representa as múltiplas faces da mulher universal. Como narradora e personagem principal, Isabel é alguém que tem consciência desse desdobramento, dessa ocupação do corpo pelo espírito das outras mulheres, mas o contrário - as outras terem acesso à consciência de Isabel - não acontece, o que faz dela um narradora omnisciente.

Ora, na peça, o espectador não consegue aperceber-se desse desdobramento, que resultaria numa polifonia que enriqueceria bastante mais a peça, mas seria de uma exigência extrema em termos performativos, obrigando à libertação dos múltiplos ‘eus’ femininos que habitam o corpo de Isabel e formam o todo de que é composta a mesma personagem. Em matéria de plurivocidade este texto de Marta Duque Vaz está ao nível de ‘Kew Gardens’ ou de ‘The Fascination of the Pool’, ambos de Virginia Woolf. E, por isso mesmo, estou convencida de que esta será talvez a maior mutilação, operada ao texto original, apesar de o efeito ser agradável ao espectador, cativado pelas palavras da autora na boca da actriz, mas em que são retiradas, em grande parte, a riqueza e a complexidade ao texto de Marta Duque Vaz.

Por outro lado, o texto que representa a voz de António, sendo ele baseado e adaptado de um conto ainda inédito da autora, mas que já lhe havia garantido um prémio numa das edições de ‘O Escritor Famoso’, em 2005, concurso patrocinado pela extinta livraria O Navio dos Espelhos, em Aveiro. A adaptação ao palco mostra um homem que se encanta pela figura do corpo da colega de trabalho da qual, sentado à sua secretária, só consegue observar o seu lado esquerdo. O olhar de António atravessa assim a janela do escritório para fora, em direcção à janela do prédio ou do bloco de escritórios em frente ao seu, e onde se encontra Isabel. E isso também não foi completamente perceptível na peça a que assistimos, na qual a protagonista já se encontra em casa, e se vai despindo, executando os gestos e rituais de uma mulher auto-suficiente, que vive sozinha, in a flat of her own, etc.

O final, na peça, é também completamente divergente do dos textos originais. Mas mesmo assim vale a pena assistir à mesma, que funde, de forma harmoniosa, os dois belos textos da autora.

Rosa Alice Branco, no prefácio para esta edição, a qual também apresentou no Coliseu, faz ver que:

«António explorou a fala do corpo de Isabel a partir da visibilidade possível que indicia no lado esquerdo da mulher e desencadeou uma reacção nuclear de todas as mulheres tatuadas em Isabel. O texto é infinito, na medida em que era possível continuar a escrever indefinidamente o que Isabel pensa de si - dessas outras de si - da sua vida, das suas crenças, dos seus delírios. O que outros julgam saber de si. Sobretudo o que se ignora e se multiplica pelas páginas em hipotéticas celebrações da vida e da ausência: da poesia, pela voz das suas poetas, que lhe tecem e destecem os seus caminhos que se abrem nas entranhas».

Pedro Trindade teve a ingrata tarefa de comentar a sequência fotográfica de Carla Sousa antes de ver a peça e sem ter tido acesso ao texto de Marta Duque Vaz, mas conseguiu capturar a essência das fotos: a expressividade dos gestos de Sonja Valentina que Carla de Sousa consegui congelar no tempo e a complementaridade dos adereços que fazem parte do cenário. De facto cada objecto tinha a sua simbologia e o seu lugar na peça. Este é o lado brilhante de Daniel de Freitas enquanto encenador, onde nada foi deixado ao acaso.


O livro é um belo objecto de colecção, com capa de Francisco Carvalho Diniz, que já havia feito também a capa do primeiro livro de Marta Duque Vaz, Aclive (poesia). O texto de O Lado Esquerdo é ilustrado com fotografias que representam alguns dos momentos mais expressivos da peça, com Sonja Valentina a dar corpo à voz de Isabel, captada pela objectiva da fotógrafa Carla de Sousa, natural de Luanda, Angola. Pode mesmo dizer-se que Carla de Sousa captou os melhores momentos da performance de Sonja com uma extraordinária beleza plástica.

O texto encontra-se estruturalmente dividido em nove secções, cada uma delas um desdobramento da personalidade de Isabel. No entanto, é impossível fazer corresponder a cada secção ou capítulo, o nome de cada uma das mulheres que aparecem no texto. A alguns destes podem mesmo corresponder duas ou três ocupantes do corpo de Isabel, a representar diferentes arquétipos corporizados. Num único corpo físico lutam assim estereótipos femininos diversos, por vezes até antagónicos, a representar relações, memórias, toda a casta de emoções e afectos. À medida que avançamos no texto percebemos que são os momentos de solidão que permitem a Isabel alimentar estas mulheres: a mesma solidão que facilita a construção do próprio discurso, resultando numa profusão de vozes que se cruzam e dialogam à vez, com o seu público real - os ouvintes - , e fictício - António, autor do e-mail que desencadeou, no momento em que Isabel vê o texto, já em casa, o coro de vozes que, dentro de si, se manifesta.

Um texto monologal, desconcertante e belo, que fala essencialmente de amor e solidão, por uma protagonista que surge sempre pronta a reiniciar a vida. sem dar nunca lugar à descrença na felicidade.




Vila Nova de Famalicão 14 de Dezembro de 2022,



Cláudia de Sousa Dias


Friday, August 26, 2022

"Histórias do Diabo" (Contos) de Orlando de Albuquerque (Capricórnio)

 


















Imagem: Edições Loyola




O autor deste livro, hoje esgotado e só encontrado em alfarrabistas ou em espólios de bibliotecas, foi um médico angolano, nascido em Moçambique, casado com a poetisa Alda Lara. Viveu grande parte da sua vida profissional no Minho, na cidade de Braga onde exerceu clínica. A sua outra faceta, a de escritor acompanhou-o, no entanto, como uma vida paralela. Começou a publicar em 1947, altura em que viu o seu primeiro livro de poesia, Batuque Negro, censurado e proibido de circular pela PIDE.


A produção literária de Orlando de Albuquerque estende-se no entanto por vários géneros, desde a poesia ao romance, passando pela crónica e o ensaio. Sem esquecer, também, a actividade como dramaturgo e contista. Estas duas encontram-se estreitamente ligadas a julgar pelo minúsculo volume de contos de que hoje aqui tratamos e cuja coloquialidade, posta na voz do narrador, sugere uma riqueza de modalização que torna a obra facilmente adaptável ao teatro, na forma de monólogo.


Os contos deste volume são na verdade pequenos monólogos, relatos narrados por uma voz popular (ou populista?), altamente persuasiva, mas revestida de uma pungente ingenuidade, susceptível a superstições, crente (?) e, pelo menos na forma do discurso, reverente ao sobrenatural. O discurso é fluido e ininterrupto, errático, algo caótico, como é típico das narrativas de tradição oral, marcada por inúmeros meandros e desvios face à trama principal, com com narrativas secundárias encaixadas. Trata-se por isso de um discurso polifónico, multi-vocal, embora vertido pela fala de um único locutor. Este é alguém altamente persuasivo, convencido da posse daquilo que apresenta como sendo uma única e absoluta verdade. Os factos que vai apresentando, contudo, desmentem-no, tornando-o numa personagem cómica, como é o caso da primeira história: “A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos quando este lhe andava a roubar as couves”.


As histórias têm sempre como protagonista o mesmo sacerdote: o padre Apolinário, sacerdote da velha guarda, que mantém a sua ascendência sobre os fiéis através da inculcação do medo do demónio, praticando e predicando uma fervorosa fé - e cobrando, claro está, dinheiro pelo serviço e arrecadando prestígio e poder através da submissão - à conta de exorcismos, rezas e bênçãos de que o seu público, profundamente crente e sugestionável, é súbdito e devedor.



Este trabalho de Orlando de Albuquerque torna-se, ao mesmo tempo, uma sátira e um retrato das crenças, dos medos mais profundos no seio de um país onde há nem meio século a esta parte grassava o analfabetismo e o medo ou desconfiança de tudo o que fosse conhecimento científico ou intelectual, principalmente nas camadas mais humildes e menos letradas do Portugal do fim da ditadura. O livro foi publicado primeiramente em 1979 e as histórias escritas alguns anos antes. Todos os contos incluídos neste volume apresentam, por isso, um padre Apolinário como líder espiritual sem rival na povoação da freguesia de Alívio (nome fictício), mas estas histórias mas são contadas por uma mesma voz que cita uma multiplicidade de outras vozes (de forma directa, indirecta e através de discurso indirecto livre), quase todas com o mesmo grau de credulidade.


A nota inicial do autor confirma estas Histórias do Diabo tratarem-se de uma recolha de narrativas de tradição oral, recompilada e articulada sob a forma de histórias interligadas - o Padre Apolinário surge como principal divulgador da crença no sobrenatural e na existência do diabo pela boca de um narrador, que lhe é próximo - relatando fenómenos supostamente (ou nem tanto) paranormais, recheados de condimentos discursivos, arranjados de forma a captarem facilmente a atenção do ouvinte. Na nota de agradecimentos, o autor dá a entender serem todas essas histórias provenientes da mesma fonte: um narrador que lhas haveria contado, em primeira mão, ou não, estas lendas com algo de gótico ou fantástico - o Ti Joaquim das Fontaínhas.

“São devidos pelo Autor ao Ti Joaquim das Fontainhas, verdadeiro narrador destas histórias, exemplo de paciência para a minha muito ignorante curiosidade que a sua tradicional sabedoria, bebida na cepa dos melhores valores avoengos esclareceu e informou”.


E por fim, ainda em nota do Autor, em forma de dedicatória ao Padre Gonzalez, surgindo como introdução à obra onde dá a entender a sua real forma de pensar, demarcando-se do narrador das suas histórias, apresentando uma postura bastante mais céptica embora não frontalmente iconoclasta:

“Posto isto, estou como aquele seu patrício, que dizia «yo no creo en brujas, pero que las hay las hay...». Que o diga o Padre Apolinário , que um dia até agarrou o pé-de-cabra pelos cornos. (...) Coisas do diabo, não haja dúvidas...”.

Na explicação da obra, à laia de provocação ou simplesmente travessuras do Autor explicadas jocosamente na dedicatória ao padre Gonzalez Quevedo, o Autor esclarece, num discurso híbrido, onde deixa a dúvida se o pensamento reproduzido é o dele próprio ou do narrador, deixando entrever o real teor e intenção da obra:

“Este livro trata das Histórias do Diabo, que ora aqui se contam e que por verdadeiras se devem ter e delas deve o leitor, atento e consciencioso, bom exemplo e proveito tirar, para que nelas encontre sólida armadura e defesa, que o livrem das solicitações do demónio e demais tentações que existem neste mundo para desgraçar as almas e conduzi-las pelos ínvios caminhos da perdição”. Este pois é o teor das histórias que foram inspiradas pelo Ti Joaquim das Fontaínhas, mas a que o autor se apressa a esclarecer acerca do seu próprio posicionamento, colocado num limiar da descrença, em dedicatória a um pragmático Padre Quevedo.

Os títulos das histórias, por si só, fazem as delícias dos mais exigentes satiristas:


  • A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos, quando este lhe andava na horta a roubar as couves.
  • De como a Rita do Regedor esteve endemoninhada e Padre Apolinário a exorcizou e depois de casada nunca mais foi presa do malvado demónio.
  • De como o avô do narrador foi dar com uma feiticeira a cavalo num tonel de vinho e a chupá-lo por uma cana e acabou por lhe perdoar.
  • De como o Diabo se disfarçou numa donzela vestida de branco para perder a alma de um pecador e depois se esqueceu das cuecas, que afinal aram vermelhas.
  • Em que se narra ao leitor o mistério das vozes na noite e de como este mistério foi finalmente esclarecido para socego (sic) e descanso das boas almas, que estiveram em grande risco e à beira da perdição.
  • Do desaparecimento de algumas celouras (sic) [ceroulas] e outras tropelias que o diabo praticou em casa do Padre Apolinário e como depois se veio a pôr tudo em pratos limpos, com grande escândula de toda a gente.
  • Em que se conta a incrível história que aconteceu ao Padre Apolinário em que este obrigou o diabo a ajudá-lo à missa.
  • Onde se conta como a Lucinda reconquistou o amor do Joaquim Piloto e como ela afinal era um coração de oiro e tudo terminou em bem.
  • Aqui se descobre a origem da estranha guerra de Padre Apolinário com o demónio e a safadeza que o Cornudo lhe fez, tentando arrastá-lo para a perdição, na figura de uma rapariga, que por acaso até era a sua governanta...

(Alerta de spoiler):

A esmagadora maioria dos contos aqui reunidos apresenta a descrição do fenómeno sobrenatural pela voz de alguém que é ou que se diz crente e que tenta persuadir a audiência - leitores ou ouvintes - da veracidade das mesmas e da existência do Diabo e das suas perversas artimanhas. No entanto, a própria narração dos factos coloca essa “verdade” em causa, como é o caso do desaparecimento dos produtos hortícolas do do quintal do Padre, como sendo obra de um bovino e que o narrador insiste ser a incarnação do próprio Satã - o tal misterioso “vulto de chifres”. Ou o autor da voz misteriosa, que se ouvia à noite em casa do Padre, e cujas ordens e directivas beneficiavam sempre o mesmo muito terreno destinatário. Ou o assalto à casa do sacerdote por outro diabo muito carnal, que acaba a ajudá-lo à missa, à laia de penitência. Uma suposta bruxa que rouba vinho, interfere com os seres do outro mundo para que aquele que a pode denunciar nunca tenha “azares” na vida. A gravidade da condição feminina é entrevista na situação da jovem atormentada por um demónio, silenciada pelo padre e pelo medo e que depois “sossega” [será?] ao casar e sair da alçada de um parente próximo que a violava. Um silenciamento operado pelo poder patriarcal, operado logo no segundo conto, o mais dramático de toda a colectânea.

Mas o mais interessante da obra é ainda um ponto de vista feminino que é mediado pelo narrador traduzido numa situação cómica desmascarada por uma mulher, que aponta a contradição entre os aspecto da roupa exterior visível e da roupa interior para denunciar a carnalidade do ser supostamente do outro mundo.

A obra de Albuquerque poderá apenas ser igualada pela de Gil Vicente na sátira e denúncia de falsos milagres, pelo que é uma pena que se encontre fora de circulação, soterrada em armários bolorentos ou armazéns inundados pela humidade e teias de aranha.




Vila Nova de Famalicão, Maio de 2022

Cláudia de Sousa Dias